Em vez de construírem torres inteiramente do zero, incorporadoras e arquitetos investem na revitalização de prédios históricos e subutilizados
O Edifício Martinelli, considerado um marco na verticalização de São Paulo (SP), completou seu centenário em 2024. Em celebração, o espaço foi reaberto para diferentes atividades, desde desfiles de moda a baladas noturnas e eventos gastronômicos, depois de um longo processo de degradação e revitalização. Se hoje, contudo, o Martinelli está de volta à atividade, é graças ao chamado retrofit, solução arquitetônica que permite a reestruturação de edificações antigas sem descaracterizar o que foi originalmente construído.
“O retrofit, mais que uma reforma, é uma qualificação tecnológica, permitindo atualização de infraestruturas, diminuição de manutenções e mitigação de patologias”, explica Emerson Penso, sócio-fundador da Kuubu Studio, escritório de arquitetura focado em retrofit. Segundo o especialista, as tecnologias e processos em canteiros de obra também são diferentes, permitindo que parte do processo seja feito remotamente e de forma industrializada, diminuindo tempo, ruídos, resíduos e impactos na vida dos moradores e vizinhos. “Somado a esses aspectos, oferece uma qualificação que mantém, ou até aumenta, o valor de mercado dos imóveis”.
O Martinelli, que começou a ser construído em 1924 por Giuseppe Martinelli, com projeto arquitetônico de William Fillinger, foi revitalizado após diferentes tentativas de preservação do seu legado. O edifício ganhou má fama entre os anos 1940 e 1960, depois de ter sido palco de crimes que chocaram a cidade. Nos anos 1970, passou a integrar órgãos públicos e a contar com comércio no piso térreo. Em 1980, sua fachada foi tombada como patrimônio histórico, e desde então o prédio tem sido pouco usado para visitação. Em 2023, enfim, a Prefeitura concedeu o edifício para o Grupo Tokyo, que encabeçou o retrofit que viabiliza os atuais usos culturais e comerciais do empreendimento.
Outras grandes edificações no Brasil podem ser frequentadas graças à revitalização por retrofit. Exemplos são a Pinacoteca de São Paulo, o Estádio do Maracanã, o Farol Santander e o Hotel Fasano. E diferentes iniciativas têm sido perpetradas, como forma de ampliar as possibilidades de uso de imóveis antigos. Em Recife, por exemplo, foi assinada a Lei do Retrofit (Lei Municipal nº 19.148/23) que oferece incentivos fiscais para o setor hoteleiro recuperar edifícios a fim de dar novo fôlego ao turismo local, que perdeu forças após a pandemia de covid-19.
Já no Rio Grande do Sul, a Associação Brasileira de Escritórios de Arquitetura (Asbea-RS) levantou uma proposta de uso do retrofit para viabilizar novas moradias após as enchentes que afetaram o estado em maio deste ano. A ideia seria revitalizar edifícios do Centro de Porto Alegre, tendo como referência o município de São Paulo, onde, segundo estudo realizado pela associação, 40 prédios na região foram reocupados num período de 5 anos após processos de adaptação das estruturas.
Portanto, seja para fins de lazer, cultura ou moradia, o retrofit tem despontado como uma forte tendência, propondo um modelo de cidade que dialoga com responsabilidade socioambiental e preservação histórica. Como explica Grazzieli Gomes Rocha, sócia diretora do escritório aflalo/gasperini: “O retrofit é uma solução que valoriza a sustentabilidade ao atualizar a estrutura de prédios existentes sem comprometer suas características arquitetônicas e/ou urbanísticas originais. Ele permite também que edifícios icônicos continuem em uso, com ganhos em eficiência energética e acessibilidade, o que seria inviável com a demolição total e reconstrução. A chave para isso é um respeito profundo pela história e busca pela utilização de elementos originais do edifício”.
Usos diversos
Um dos exemplos de como o retrofit pode ser utilizado para diferentes fins é o Beyond The Club, projeto assinado justamente por aflalo/gasperini, possível graças à revitalização do antigo Hotel Transamérica, projetado nos anos 1980 pelo mesmo escritório. Neste caso, o retrofit não se preocupou em manter a estética original, mas sim sua estrutura, conferindo uma aparência mais contemporânea e expandindo as possibilidades de uso do edifício. O objetivo do projeto era criar um oásis urbano, que inclui praia artificial com ondas e uma série de espaços de convivência e lazer.
“Nesse processo de transformação, quartos privativos foram convertidos em áreas de convivência abertas e dinâmicas, enquanto o pé-direito foi ampliado com a remoção de lajes intermediárias para criar ambientes mais generosos e conectados. Esse tipo de intervenção requer soluções engenhosas, como reforços estruturais que garantem a integridade do edifício ao mesmo tempo em que atendem às novas exigências espaciais e funcionais”, explica a arquiteta.
Além de contar com espaços tradicionais em clubes, como academia e infraestrutura para práticas de esporte, o Beyond The Club inclui opções como área de hospedagem, coworking, simuladores de ski, pista de skate e prática de surf com uma piscina de ondas. “Um dos principais desafios é a necessidade de adaptação tecnológica sem comprometer elementos da estrutura original. Equipamentos modernos de ventilação e isolamento térmico, por exemplo, precisam ser integrados de forma sutil. Além disso, a instalação de acessibilidade e sistemas de segurança pode ser complexa, exigindo soluções sob medida para respeitar as limitações de construções mais rígidas e com menor flexibilidade estrutural”, pontua.
Desafios também foram enfrentados pelo escritório Superlimão no projeto LAPI, um empreendimento de 20 mil m² que integra 29 imóveis em três quadras na Zona Oeste de São Paulo. As unidades terão os mais diversos usos, desde residências a comércios, criando um espaço multiuso e integrativo – o nome, LAPI, é a junção de Largo da Batata e Pinheiros. Para viabilizar o retrofit dos imóveis da região, no entanto, foi necessária até mesmo a regulamentação dos imóveis, uma vez que foram constatados tanto imóveis irregulares e unidades regulares com divergências entre a construção real e o documento aprovado pela Prefeitura de São Paulo.
“O principal objetivo do projeto LAPI é a requalificação dos imóveis compreendidos em sua totalidade e a consequente ressignificação do seu entorno. Por meio da regularização de todos os imóveis, foram necessárias demolições a fim de reverter as condições originais ou atender a parâmetros urbanísticos atuais. Desta forma garantimos permeabilidade, melhores condições de aerabilidade e luz natural para pontos antes totalmente cobertos. Ainda na nova aprovação pudemos usufruir dos incentivos de fachada ativa potencializando em até 20% a mais de área construída além do coeficiente existente básico da região”, explica Thiago Rodrigues, arquiteto e sócio do Superlimão.
Seguindo a proposta de tornar a região um espaço integrativo, o projeto unificou alguns dos 35 imóveis adquiridos e eliminou os muros de divisa entre eles, viabilizando a criação de praças internas nos lotes e possibilitando a fruição livre do pedestre entre as quadras cruzando de um ponto a outro. “A fruição promove o fluxo de pessoas por entre espaços de lojas e restaurantes, trazendo uma valorização direta para metros quadrados antes escuros e sem qualquer qualidade de conforto. Os materiais removidos nas demolições foram destinados a doação ou reutilizados na composição do novo piso e mobiliário das áreas comuns”, pontua o arquiteto.
Retrofit e o centro das cidades
A revitalização de edifícios históricos faz parte de um diálogo sobre a reocupação de grandes centros urbanos, onde prédios antigos se tornam subutilizados mesmo que sejam servidos boas opções de lazer, serviços e transporte. Tal reflexão é o que propõe o METRO Arquitetos no projeto requalificação e restauro do Edifício Renata Sampaio Ferreira, originalmente projetado pelo arquiteto Oswaldo Bratke em 1956. “Um edifício esvaziado numa região central com grande oferta de linhas de metrô, ônibus, espaços públicos, calçadas largas, significa um enorme prejuízo para a cidade. E quando você reativa esse lugar, ainda mais com moradia, significa que a infraestrutura urbana ali presente está sendo melhor utilizada, com mais moradores, menos dependência do carro, mais comércio de rua e, portanto, mais urbanidade”, diz Gustavo Cedroni, que comanda o escritório ao lado de Martin Corullon.
O Renata Sampaio é uma das seis edificações tombadas em 2012 pelo CONPRESP (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo) da chamada “São Paulo Moderna”, conjunto urbano de grande valor histórico e arquitetônico no centro de São Paulo. O edifício contemplado no Programa Requalifica Centro, que incentiva projetos de retrofit com benefícios fiscais, e o projeto de intervenção contou a participação direta do Departamento de Patrimônio Histórico da Prefeitura de São Paulo (DPH). na aprovação de diretrizes de preservação e restauro.
Para tornar o edifício comercial em residencial, foram adotadas soluções programáticas juntamente com a Planta Inc, empresa especializada em ativação de imóveis subutilizados na região central. “A transformação compreendeu a adaptação das lajes de escritório para criar 93 unidades residenciais de diferentes tipologias (de 25m² a 284m²), além de novos espaços de convivência e lazer, como academia, sauna, piscina, restaurante, café e um bar. A configuração dos novos ambientes, com apartamentos para curta e longa estadia e áreas comuns, promove uma experiência de moradia que valoriza a história do bairro”.
No Largo da Misericórdia, próximo à Praça da Sé, outra intervenção está em andamento. A Somauma, incorporadora focada em reabilitação de edifícios vazios e subutilizados em São Paulo, está trabalhando na revitalização do Edifício da Misericórdia para levar moradia ao Centro Histórico. “O processo de reabilitação se iniciará em 2025. Enquanto o prédio aguarda as aprovações de projeto nos órgãos públicos, fazemos, de forma coletiva, ativações culturais como uma maneira de resgatar a nossa história e fortalecer o trabalho da arte autoral e independente”, explica Marcelo Falcão, sócio da Somauma e diretor de comunicação e novos negócios.
A primeira ativação cultural foi promovida pela própria Somauma, que convidou curadores que selecionaram um conjunto de artistas visuais, designers e artesãos para exposição de variadas obras, de pinturas a instalações, além de feira de produtos autorais. “Estas atividades não tem caráter de geração de lucro, mas sim de gerar impacto positivo para todos os envolvidos. A ideia é transformar espaços em lugares, gerar mais movimento, o que aumenta a sensação de segurança, ajuda a girar a economia e traz o senso de pertencimento com o centro da cidade. Para isso parar em pé, fazemos as adaptações necessárias de infraestrutura para garantir a acessibilidade e segurança”, afirma o executivo.
Formatos diversos
É possível categorizar diferentes formas de retrofit, como a revitalização específica de fachadas. O programa Sto reStore, da empresa especializada em revestimentos e fachadas Sto Brasil, dedica-se integralmente à intervenções dessa modalidade, oferecendo uma linha de soluções a fim de corrigir problemas de umidade, melhorar a eficiência energética e renovar a estética das fachadas. Exemplo é o projeto realizado na Sede Mundial da Igreja Pentecostal Deus é Amor, um empreendimento de 16.800 m² de área.
“Inicialmente pensamos em outras soluções, mas ao compreender a necessidade do cliente vimos que o que contemplaria todas as especificações e anseios do projeto seria um sistema de revestimento de fachadas que garante conforto térmico, infinitas possibilidades de acabamento, além de proporcionar uma fachada sem trincas ou fissuras”, comenta William Medeiros, Gerente Técnico, Comercial e Marketing da Sto Brasil. “Entre os benefícios mais relevantes estão a velocidade de execução, facilidade da não remoção do antigo revestimento, aspecto repelente de água, evitando assim manutenção, e o custo x benefício”, finaliza.
Outra forma de revitalização é o retrofit no retrofit, como proposto pelo Studio VA em um projeto para um escritório de advocacia localizado no Edifício Bravo Paulista, em São Paulo (SP). O prédio havia sido retrofitado poucos anos antes pelo Dal Pian Arquitetos, assim a unidade sofreu intervenções para adaptar determinados aspectos que não haviam sido contemplados pelo retrofit da torre. “O grande desafio não foi melhorar o que estava danificado e sim trabalhar com projeto de interiores com situações que não foram pensadas no retrofit do prédio, como um dreno de ar-condicionado e pé direito baixo existente”, explica Vinícius Alves, arquiteto responsávelo pelo Studio VA.
Segundo o arquiteto, foi desenvolvido um projeto de interiores complexo em que a própria estrutura serviu como inspiração para a narrativa projetual. “Harmonizamos as linhas, brises e malha estrutural existentes com as formas volumétricas propostas em projeto, desde a ilha central revestida em formiwall curvo até a linearidade da estante que abraça todo o projeto. Adaptamos todo o sistema de ar condicionado chegando ao êxito de minimizar visualmente seu volume. Adotamos laje aparente, sem o uso de forro de gesso para tampar a estrutura. Trabalhamos com jogos de volumes entre a recepção e o staff para valorizar a mesma estrutura”, comenta.
O que mais pode ser feito
Embora o retrofit não seja recomendado para toda e qualidade revitalização de edifícios históricos – alguns casos precisam, de fato, de restauro e conservação –, a estratégia ainda pode ser considerada um investimento para uma urbanização mais sadia. “O retrofit precisa ser mais praticado por grandes incorporadoras e investidores. O resultado é um ativo para a cidade que respeita seu histórico, gera muito menos resíduo, menor impacto no seu entorno respeitando a escala e o processo natural de amadurecimento da cidade. É uma oportunidade de promover novos usos, misturando serviços, consumo, moradia, educação e cultura em regiões em que os processos urbanísticos anteriores falharam”, diz Thiago Rodrigues, do Superlimão.
Emerson Penso, do Studio Kuubu, discorre que nas Parcerias Público Privadas (PPP) ampliar os usos do retrofit no Brasil. Nesses casos, parte do custo de revitalização de edificações históricas ou degradadas teriam em contrapartida benefícios como concessões temporárias ou exploração comercial, como ocorre na revitalização da zona portuária do Rio de Janeiro (Porto Maravilha). “Outra possibilidade é fomentar fundos imobiliários dedicados a retrofit e revitalização de áreas centrais. O Poder Público pode participar como investidor inicial ou garantir facilidades regulatórias para a captação privada”, opina.
Existe ainda a possibilidade do retrofit auxiliar no enfrentamento ao déficit habitacional em grandes cidades, como aponta Grazzieli Gomes Rocha, do aflalo/gasperini. “Seria um caminho sustentável e de menor impacto ambiental comparado à construção de novos empreendimentos. No entanto, ele deve ser complementado por políticas habitacionais amplas, que garantam acessibilidade econômica e infraestrutura adequada para as populações mais vulneráveis, ao mesmo tempo, com incentivos que atraiam o investimento das incorporadoras e construtoras”, finaliza.
Por Redação