Para estimular o uso racional de recursos hídricos, a construção civil tem investido em tecnologias e práticas de reuso.
Pensar em redução do consumo e do desperdício de água é algo que, costumeiramente, está atrelado aos hábitos dos usuários. Entretanto, o setor da construção civil está cada vez mais ciente de que pode propiciar mecanismos e tecnologias que facilitem o uso racional de água. As práticas são variadas, em diferentes frentes, desde o reuso de água até inovações para a irrigação de jardins.
O engenheiro Eduardo Pacheco, diretor técnico do Portal Tratamento de Água, lembra que algumas soluções como limitadores de vazão, caixas d’água com dois níveis e chuveiros inteligente já estão à disposição no mercado. Entretanto, há recursos mais elaborados que podem trazer economia mais efetiva, como é o reuso de água de esgoto.
“A água não pode ser destinada para consumo humano, mas pode ser usada em vaso sanitário, que é o uso mais cruel da água potável, para transportar fezes”, explica. O engenheiro esclarece que os mecanismos de reuso de água de esgoto está, em geral, associado às águas de torneiras, pias e ralos, classificadas como água cinzas. Águas que venham de vasos sanitários demandam um tratamento mais elaborado.
O engenheiro esclarece que o reuso de água de esgoto nas edificações necessita uma rede separada, por isso é mais difícil de implantar a solução em edifícios antigos. “Mas alguns condomínios estão buscando implantar, porque reduz muito o consumo de água”, diz. O investimento em tecnologia de reuso de água de esgoto deve levar em conta que há um custo com a compra e também com a manutenção. O tratamento da água é um processo químico elaborado, e só pode ser executado por profissionais com registro no Conselho Regional de Química (CRQ).
“Para shoppings, por exemplo, vale tanto a pena que costumam fazer reuso do esgoto todo. Para edifícios residenciais é menos vantajoso”, Eduardo Pacheco pondera. Segundo o engenheiro, como tratamento tem alto grau de exigência de qualidade, em muitos casos não é recomendável. Empreendimentos de grande porte, em geral, contratam equipe terceirizada para realizar essas atividades, evitando contaminações por produtos químicos e proliferações de doenças.
Outra solução possível é o tratamento de água de chuva, que envolve um processo mais simples e pode ser mais facilmente adaptado a edifícios antigos. O mercado oferece diferentes cisternas para esse tipo de solução, que podem se adequar a diferentes demandas. “Mas é difícil espaço de adaptação. Tem o problema da carga, do peso da cisterna. Se a construção não for pensada para isso, fica difícil”, diz Eduardo Pacheco.
Para o engenheiro, a utilização desses recursos ainda é prematura no Brasil, motivado principalmente pela desinformação. “É complicado deixar uma estação de tratamento para as pessoas tomarem conta, precisa de cuidado. Para algumas construções vale mais produtos como chuveiros inteligentes e a educação das pessoas do que operações que requerem especialistas”, pondera.
No Rio Grande do Sul, a sede estadual da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (Fecomercio) adotou amplamente o tratamento da água. De acordo com Vitor Dossa, gerente de condomínio da sede, 100% do esgoto é tratado e retornado para os canais da concessionária local. “A rede passa bem ao lado e entregamos uma água limpa. O tratamento atinge aproximadamente 80% de pureza”, diz.
Além de soluções como temporizadores em torneiras, válvulas de descarga duplas e equipamentos que realizam limpeza de louças com vapor de água, a Fecomerico-RS investiu pesadamente em reuso de água de chuva. Os 38 mil m² do projeto contam com um sistema de drenagem por meio de um lago artificial, que funciona como uma cisterna a céu aberto. A distribuição dessa água consome energia elétrica, e para isso o edifício conta com placas de energia solar (que suprem 50% da demanda) e geradores de energia a gás natural. A água não é utilizada para consumo, apenas para irrigação de jardins.
Os tetos verdes aumentam o potencial de economia de água. “Eles têm uma camada filtrante pequena e uma camada de terra, substrato e grama. A água se deposita, escorre e cai sobre umas formas de colmeia, escorrendo para um captador que canaliza e manda para nossa cisterna”, explica Vitor Dossa. São 8mil m² de tetos verdes captando 600 mil litros de água.
Todo o conjunto de soluções empregadas geram benefícios, desde economia até contenção da água que alagaria a região durantes as chuvas. Segundo o gerente, a Fecomercio-RS investiu R$ 230 milhões no projeto. “Se gastou bastante, mas não em mármore, madeira nobre, nada disso. Se gastou em tecnologia”, afirma.
Jardins
No que diz respeito a projetos paisagísticos, o reuso de água é uma das soluções mais viáveis. Exemplo é o que o Grupo VG, aceleradora de greentechs de paisagismo, realizou ao desenvolver as chamadas Wetlands nas estações de transporte sobre trilhos Cidade Jardim e Vila Olímpia, em São Paulo (SP). Custeadas pela iniciativa privada (bancos Santander e Bradesco), as Wetlands são jardins verticais que utilizam água tratada dos esgotos.
“Tratamos toda a água de vaso sanitário, mictórios e pias, filtramos e redirecionamos para 1000m² de jardins verticais. Não devolvemos água sem tratamento para a Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo)”, relata Bruno Watanabe, CEO do Grupo VG.
A iniciativa, segundo o profissional, contribui também no âmbito social. “Não só é economicamente viável como é uma questão de saneamento básico no brasil. E muita gente acha que é uma super tecnologia, mas não. As Wetlands são conhecidas fora do Brasil”, diz. Bruno Watanabe defende que a solução seja transformada numa infraestrutura de saneamento capaz de prevenir poluição de rios e alagamentos.
Para o CEO do grupo VG, o Brasil ainda engatinha no que tange ao uso racional de água, por mais que seja abundante em recursos hídricos. “O ponto não é o volume de água em períodos de chuvas, mas os armazenamentos e o sistemas inteligentes durante as estiagens”, opina. Em ambientes corporativos com projetos de paisagismo, o uso de vasos e sistemas drenantes inteligentes seria mais em conta que a rega manual.
O Grupo VG, em razão disso, tem desenvolvido os próprios vasos auto irrigáveis para plantas de grande porte, com um sistema que retém água na parte inferior e faz com que as raízes se aprofundem no solo. A técnica substitui a tradicional rega de cima para baixo e faz com que o vaso seja regado apenas quatro vezes ao ano. “Cada vez as áreas verdes valorizam o imóvel e retornam como payback para o empreendimento”, pontua Bruno Watanabe.
O professor Benedito Abbud, arquiteto paisagista, concorda. Segundo o arquiteto, edifícios que incluem jardins com soluções sustentáveis têm valor agregado. “Hoje é muito valioso morar em espaços biofílicos, lugares gostosos abraçados pela vegetação. Antes era decoração, hoje é mais que isso, é uma tendência morar em locais vegetados”, explica. Assim, soluções de economia de água ganham maior relevância para o mercado imobiliário.
Benedito Abbud desenvolveu um sistema especial, chamado Tec Garden, para reaproveitar água de chuvas em tetos verdes. “Como trabalho muito sobre laje, bolei o sistema que faz um lençol freático artificial”, explica o professor. A tecnologia conta com placas sobre pedestais e pavios que vão até o fundo da laje, sustentando o jardim e mantendo um vazio de 10 cm, onde a água fica armazenada. Os pavios fazem a água subir por capilaridade, sendo assim ideal para que forrações e arbustos cresçam sem manutenção de bombas de energia. “É muito mais eficiente que irrigação feita por jardineiros. E o sistema permite a utilização de água cinza ou água de reuso, que pode ser introduzida diretamente no lençol freático”, afirma.
Os tetos verdes trazem inúmeros benefícios, como melhor impermeabilização e menor impacto pela dilatação e contração da laje diante das mudanças de temperatura. Há ainda ganhos ambientais, mantendo o clima mais saudável em centros urbanos. “As pessoas estão descobrindo que vegetação ameniza ilhas de calor nas cidades”, menciona Benedito Abbud.
Métodos construtivos
Lucas Bongogo, gerente técnico da construtora Decorlit, informa que as técnicas de reuso de água de chuva e de efluentes, assim como outras tecnologias de redução de consumo de recursos hídricos, são reguladas pelas NBR 16782 e NBR 16783. Contudo, para a construção civil é importante ainda que as obras sejam realizadas com menor consumo de água, buscando inovações que sejam economicamente viáveis e interessantes do ponto de vista arquitetônico.
A Decorlit, assim, aposta em construções a seco, com sistemas como Light Steel Frame, Steel Frame, Wood Frame, e outros sistemas modulares pré-fabricados. “Os efluentes são controlados na indústria com maior rigor, mais fiscalização, do que num canteiro de obra. Cada estado tem uma legislação específica, então daria para ter uma solução única”, pondera.
Com os sistemas modulares, as chapas de madeira ou aço saem prontas de fábrica para serem fixadas, sem a necessidade de se utilizar água para argamassa como na alvenaria tradicional, por isso são chamadas de construções a seco. “Na fabricação, todas as indústrias têm tratamento de efluentes e circuitos fechados de água”, diz Lucas Bongogo.
A vantagem é que os sistemas podem ser utilizados para qualquer tipo de edificação e arquitetura. Para o gerente, a adesão às construções a seco depende do fator financeiro, sendo necessário que o arquiteto apresente cálculos que comprovem que o valor investido é retornado pela economia no consumo de água.
Construção a seco é uma aposta também da empresa Quick House, evitando o uso de água nas obras, com exceção das fundações de concreto. “Para o operário é mais saudável, sem umidade e poeira de uma obra convencional”, diz Roberto Decker, arquiteto e responsável técnico da instituição.
Numa obra de alvenaria, cada metro quadrado pode consumir de 200 a 250l de água. Nas construções modulares, não há consumo, pois os operários apenas parafusam os painéis prontos de fábrica, de forma mais limpa. “Criamos tantos painéis quanto forem necessários para a obra, e já vão prontos para montagem. Uma construção de 100m² pode ser montada em 3h”, conta Roberto Decker.
A iniciativa da Quick House surgiu mais como uma visão de mercado do que uma demanda específica do público, observando que a construção convencional desperdiça muito material e perde controle do orçamento. Mas hoje há maior interesse do consumidor final. “Sem dúvida, de 3 ou 2 anos para cá a demanda aumentou muito por sistemas construtivos alternativos. Hoje já representa de 2 a 2,5% do mercado, e a tendência é crescer”, diz Roberto Decker.
Para que essas tecnologias se difundam mais intensamente na construção civil, demandará tempo, até para adequação da mão de obra e para uma melhor regulamentação. “A cultura é muito arraigada na construção convencional”, finaliza.
Por Victor Hugo Felix
Imagens: Nelson Kon e Divulgação