Artigo da jornalista graduada em Museologia Letícia Turcato Heinzelmann defende que ao lembrarmos do passado podemos viabilizar a prevenção de novas tragédias
*por Letícia Turcato Heinzelmann
A enchente histórica que enfrentamos em 2024 abre os olhos de Porto Alegre para a importância de um personagem que vinha sendo constantemente criticado, ameaçado e, mais perigoso, negligenciado. O Muro da Mauá faz parte do sistema de proteção contra cheias da capital gaúcha. Neste ano, completa seu 50.º aniversário, sempre apontado por parte da população como vilão que obstaculiza a fruição do Lago Guaíba. Porém, essa cortina de defesa foi projetada a fim de evitar catástrofes na cidade, que está em posição geográfica vulnerável a enchentes: a apenas três metros acima do nível mar e às margens do desaguadouro de uma bacia hidrográfica que corresponde a um terço do Rio Grande do Sul.
As cheias do Guaíba são observadas pela população desde a fundação da cidade, há mais de 250 anos, como bem registra o escritor Rafael Guimaraens, em A enchente de 41: “Consta que os casais açorianos fundadores de Porto Alegre teriam se encantado com o enorme rio que lhes proporcionaria água abundante e a visão de um pôr-do-sol inigualável. Mas esta beleza toda teria um preço”. Recebendo as águas dos rios Jacuí, Caí, Gravataí e Sinos, além do Taquari, chuvas fortes, mesmo a quilômetros de distância, acabam convergindo ameaçadoramente em direção à capital, que fica suscetível a alagamentos.
Não há recorrência precisa para o registro de cheias, que podem ser mais ou menos graves a depender de uma série de fatores climáticos. Geralmente, altos volumes de chuvas são registrados em anos de El Niño, fenômeno em que o Oceano Pacífico fica mais quente que a média histórica. Foi o caso em 1914, 1926, 19 40, 1967, 1983, 2015 e 2023, anos em que as águas do Guaíba atingiram níveis de atenção na primavera. Em 1941 e agora em 2024, outros fatores climáticos somados contribuíram para a recorrência de fortes chuvas no outono, ocasionando novas e mais severas enchentes em maio: as marcas históricas, respectivamente, de 4,76m e 5,33m.
O Muro da Mauá foi construído para conter uma cota de até seis metros – e tem cumprido sua função. O alagamento da cidade, porém, ocorreu devido a falhas em uma das comportas e em casas de bombas. Isso se deu pela falta de manutenção, uma recorrência ao longo destes 50 anos. Na primeira tentativa de fechamento dos portões, em 1983, eles já estavam enferrujados. No ano passado, a comporta que protege a região do 4.º Distrito e uma bomba já haviam falhado. E tudo indica que não houve reparos desde então, visto o resultado da enchente cidade adentro.
Até há pouco, ainda se falava em derrubar o muro e substituí-lo por alguma alternativa mais “estética”. Falou-se até em instalar acervos de arte nos armazéns do Cais, o que foi combatido por pesquisadores de Conservação e Patrimônio Cultural. Diante da impossibilidade técnica de tal empreendimento, ele não foi nem substituído nem cuidado.
Se já ocorreu em 1941 – a grande enchente que mobilizou o planejamento do Muro da Mauá –, não era possível saber o que estava por vir em 2024? Mas quem lembrava recentemente da enchente de 1941 e da função do muro?
O apagamento de memórias traumáticas após sucessivas gerações é um fenômeno comum, especialmente em catástrofes que podem ter recorrência após longos períodos – Letícia Turcato Heinzelmann
A pesquisadora Myrian Sepúlveda dos Santos utiliza o termo “pós-memória”, cunhado pela americana Marianne Hirsch, que “caracteriza a experiência daqueles que crescem dominados por narrativas que antecedem seu nascimento, moldadas por acontecimentos traumáticos que não podem ser totalmente compreendidos, recriados; caracteriza, portanto, a experiência daqueles que têm suas próprias histórias afastadas pelas histórias de gerações anteriores”.
A dificuldade de expressar o trauma pode levar a um apagamento do alerta para gerações futuras. Conceitos como memória coletiva e memória social remetem a fenômenos associados à relação entre passado e presente. O termo pós-memória surge para denominar um investimento imaginativo, em que não são transmitidas narrativas, mas sensações e emoções. Esse trabalho é importante para compreender as consequências que um passado traumático tem sobre gerações subsequentes. O impacto da enchente de 1941 era indizível, inarrável, como o trauma do soldado que retorna silencioso do campo de batalhas, exemplificado por Walter Benjamin.
Mas apenas ao lembrar do passado pode-se ajudar na prevenção de novas tragédias. Para isso, é necessário que haja lembretes, marcos que nos confrontem com esse sentimento incômodo. O Muro da Mauá foi construído para proteger Porto Alegre das águas. Sua construção entre 1971 e 1974, no contexto de grandes obras executadas pela Ditadura Civil-Militar, se deu, portanto, sem debate popular – o que gera ruídos até hoje.
Com a redemocratização e o crescente engajamento social e ambiental da população de Porto Alegre, ele passou a ser colocado em cheque e questionado enquanto obstáculo entre a cidade e seu lago. Porém, ele cumpre seu papel e poderia incorporar novas funções simbólicas, como a de preservar as memórias das enchentes, tonando-se patrimônio de alerta, um “antimonumento”, na definição de Márcio Seligmann-Silva: o patrimônio que opera dentro dos sentidos filosóficos de lugar, território e rituais, tendo capacidade de advertir sobre situações-limite enfrentadas por uma população.
Essa nova função de antimonumento exerceria um “trabalho de memória”, definido por Paul Ricoeur como uma exigência vital. Para além de lembrar, a memória precisa ser trabalhada de forma recorrente, obsessiva. Manuel Reyes Mate fala sobre “dever de memória”, em perspectiva originada na filosofia apriorística de Kant.
O Muro da Mauá está lá há 50 anos, de prontidão, mas sem nos informar nada. Diante do aquecimento global e da perspectiva de agravamento de eventos climáticos extremos, não devemos deixar de trabalhar essa memória. Só em alerta iminente estaremos nós também de prontidão para cobrar de autoridades que as necessárias manutenções sejam feitas periodicamente a fim de que nosso sistema nos proteja de futuros traumas.
* Letícia Turcato Heinzelmann é jornalista (PUCRS), graduanda em Museologia, aluna especial no Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Urbanismo (PROPUR) e integrante do grupo de pesquisas Gestão de Acervos e Direitos Humanos (GADH) na UFRGS.
Fonte: Jornal da Universidade do Rio Grande do Sul – Publicado em 29 de maio de 2024.
Imagem: Flávio Dutra