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De ponta a ponta

Em obras, a gestão de resíduos deve ser planejada desde o desenvolvimento do projeto até o descarte final dos materiais.

 

Para que um projeto de construção ou reforma seja eficientemente sustentável, todas as etapas devem ter um plano efetivo de gestão de resíduos. O planejamento adequado pode tanto reduzir o volume de descartes como garantir que a disposição final siga as normas nacionais e regionais. Entidades do setor, desde empresas privadas a órgãos do Estado, confirmam que os cuidados com a geração de resíduos devem ser de ponta a ponta.

A analista de meio ambiente do Sindicato da Construção Civil do Estado de São Paulo (SindusCon-SP), Vanessa Dias, esclarece que a gestão sustentável dos descartes engloba diferentes fatores. Dias pontua a importância de se trabalhar com mão de obra qualificada que saiba evitar retrabalho e desperdício de produtos.

 

“A redução da geração de resíduos se inicia na escolha do terreno, passa pelo desenvolvimento do projeto, pela escolha dos materiais e sistemas construtivos e pela execução da obra (transporte, armazenamento e manuseio dos materiais). Sendo assim, o desafio está em todos os momentos da obra” – Vanessa Dias, analista de meio ambiente do SindusCon-SP

 

Do início

A VG Resíduos desenvolveu um software para auxiliar a gestão de resíduos de diferentes empreendimentos, incluindo obras da construção civil, trazendo levantamentos de como reduzir a geração de resíduos e como descartá-los corretamente. “A primeira coisa a se fazer é estabelecer o Plano de Gerenciamento de Resíduos da Construção Civil (PGRCC), pontuando quais resíduos serão gerados e informando os dados do empreendimento” diz Victor Gomes, analista de sucesso do cliente da empresa.

Seguindo a mesma linha, a arquiteta Veronica Polzer, PhD em resíduos sólidos e sócia fundadora da Polzer Ambiental, explica que toda a gestão se inicia na fase de projeto. “Os canteiros devem prever a segregação correta dos RCCs para que quase 100% dos resíduos sejam valorizados”, diz. Segundo a arquiteta, no projeto é possível prever o fluxo de resíduos do empreendimento e assim determinar espaços adequados para armazenamento de recicláveis, rejeitos e até permitir a compostagem.

Um dos trabalhos iniciais é a retirada de terra em processos de terraplanagem. Contudo, a terra que não tem serventia em determinado terreno pode ser fundamental em outro. Desse modo, segundo Victor Gomes, uma das soluções utilizadas pelas construtoras é o reuso do material descartado em obras da mesma empresa. “Tenho visto clientes nessa fase mandarem a terra para suas outras obras, em vez de mandar para aterros”, conta.

Veronica Polzer ainda afirma que o planejamento deve prever técnicas para redução de desperdícios. Um exemplo é a racionalização da alvenaria, com tamanhos de paredes sem quebras irregulares de blocos. “Assim, todas as peças devem ser projetadas para que os blocos terminem a fiada inteiros ou na metade, gerando menos resíduos”, pontua.

É nesse contexto que construções modulares se tornam apropriadas. A Modularis é uma empresa desse setor e, de acordo com o CEO Paulo Salvador, esse tipo de construção possibilita um amplo reaproveitamento de materiais. “As peças vão se juntando como um lego. O que sobra você guarda e reaproveita. Toda matéria prima tem esse mindset”, explica. Não apenas os materiais podem ser reaproveitados, como obras inteiras. “Fechamos contrato de fabricação de 100 unidades de lojas de varejo. Para isso, contamos com 30 módulos de lojas que estavam em estoque”, conta.

Algumas empresas têm apostado na produção de materiais já com a intenção de facilitar a gestão de resíduos, como é o caso das peças de concreto da Isobloco. Os produtos têm dimensões modulares, mas não se limitam às construções desse tipo. Além disso, dispensam o uso de reboco e chapisco, diminuindo o consumo de matéria-prima e água. “Obras que utilizam esse produto reduzem em até 50% a geração de resíduos. E o que sobrar é reciclado na própria obra, sem necessidade de retorno à fábrica, sem logística reversa”, explica Henrique Ramos, CEO e fundador da Isobloco.

A Trashin, startup focada na gestão de resíduos, aposta na parceria com a Isobloco, utilizando unidade móvel nas próprias obras para reciclar e reutilizar as peças dos produtos descartados. A empresa ainda trabalha em conjunto com a Refaz Mobília, iniciativa que reutiliza madeiras de construção em mobiliários e projetos de interiores. “Trabalhamos com cerca de 60 toneladas ao mês de resíduos de construção. Conseguimos ter o reaproveitamento de plástico, de papel e até mesmo produzir madeira sintética com alta durabilidade com os resíduos gerados”, diz Sergio Finger, CEO da startup.

 

Segregação correta

Para que os materiais possam ser reciclados e reutilizados é fundamental que a segregação seja de acordo com sua classificação. “Não pode haver caçambas mistas, cada material deve ser acondicionado na sua baia, big bag ou caçamba”, explica Veronica Polzer.

A segregação adequada evita a contaminação dos produtos e facilita os processos de reutilização e reciclagem, ideais para reduzir a disposição dos resíduos em aterros. “Se os blocos de concreto não tiverem contaminação, podem ser reaproveitados para outros materiais, como areia, brita, pedriscos, e ser utilizados na mesma obra”, afirma Sergio Finger.

Segundo o CEO da Trashin, os pequenos geradores são os que têm menor aproveitamento dos resíduos, embora os materiais descartados sejam mais concentrados. “Os pequenos geradores têm o problema dos custos da destinação adequada. Geralmente contratam carroceiro para fazer uma destinação irregular. Há muita perda por conta disso”, explica.

Finger lamenta que, nas atuais construções, não se separa nem os resíduos que são coletados pelos municípios. “O correto é separar o reciclável dos outros materiais e procurar empresas que ofereçam soluções regionais. Além disso, é importante olhar o que pode ser reutilizado, doado ou comercializado, como torneiras, portas, entre outros”, pontua.

A arquiteta Veronica Polzer informa que a equipe de obra deve determinar os locais de armazenamento de cada resíduo, de acordo com o fluxo e a geração naquele momento da construção. “A caçamba ainda é vista como uma grande lixeira, onde se pode misturar tudo, quando na realidade os resíduos de obra são fáceis de ser separados, são mais homogêneos que os resíduos domésticos e são gerados em fases distintas da obra”, diz.

O entulho pode ser triturado e transformado em agregado não estrutural, utilizado para pavimentação e enchimento. Já o gesso pode ser beneficiado e se transformar em placas de drywall, A madeira pode ser encaminhada para biomassa. “O objetivo é buscar soluções para promover a não geração dos resíduos, mas se esses forem gerados, o próximo passo é procurar oportunidades de reuso e valorização através da reciclagem e compostagem”, frisa a especialista.

 

Reciclagem e reuso

Leonardo Miranda, professor da Universidade Federal do Paraná, defende que no Brasil falta incentivo para estimular o reaproveitamento dos materiais descartados em obras. “Principalmente resíduos classe A, que são 50% do resíduo gerado. A reciclagem reduziria o descarte irregular e diminuiria os custos da obra, evitando o transporte de entulho, economizando na quantidade de agregado natural. As prefeituras teriam menos gasto com limpeza”, defende o especialista, autor de cerca de 90 artigos sobre reciclagem e reuso na construção civil.

De acordo com o professor, em grandes empreendimentos é possível ter alta economia. Leonardo Miranda relata, como exemplo, o caso de uma construtora que obteve redução de R$ 500 mil nos custos a partir da reciclagem de resíduos nas próprias obras. “Alugaram britador móvel e reciclaram o entulho para subir base dentro do condomínio. Obras pequenas têm menor economia, mas seguem padrão semelhante. Gerar entulho e colocar na caçamba é como jogar dinheiro pela janela”, defende.

Uma vez que os resíduos classe A são gerados em maior volume e têm grande potencial de reciclagem, o professor aposta nesse tipo de material para ser processado nas próprias obras. Eles podem ser utilizados em pavimentação, argamassa para tijolos, revestimento ou contrapiso. “Se substituir cerca de 40% do agregado natural por resíduos de construção, já se consegue reusar todo entulho gerado na obra. As argamassas, por exemplo, trazem economia na quantidade de cal que deverá ser usada na construção”, acrescenta.

Considera-se reciclagem quando o resíduo passa por britador ou moinho e tem redução de tamanho de partícula. Pode ser feita na obra por meio de um moinho ou uma usina móvel pequena, que pode ser colocado em qualquer lugar da construção. “Se não for na obra, pode ser feita reciclagem numa usina, seja ela fixa ou móvel. Mas essas usinas seguem uma planta que eu considero meio ultrapassada”, diz Leonardo Miranda.

O professor desenvolveu uma usina móvel, com apoio do BNDES, que funciona com menos mão de obra, controlando a distribuição glanurométrica, removendo as impurezas dos entulhos por meio de ventilação. “Essa usina possui esteiras que fazem movimento radial e jogam o agregado em camadas, de forma a homogeneizar e diminuir variação das propriedades físicas. Fazendo isso, há garantia de que o agregado produzido tenha boa qualidade”, afirma o professor da UFPR.

 

Resíduos perigosos

Um dos pontos cruciais das obras de construção são os resíduos perigosos, como tintas e solventes. Mesmo EPIs contaminados por esses produtos devem ter um descarte específico para que não sejam destinados a aterros irregulares, nem causem problemas de saúde para os trabalhadores. “É necessário cuidado principalmente na utilização do material completo. Não é possível reciclar um balde que ainda tenha tinta, mas se só restar uma camada fina, pode. Tem que haver esse cuidado na utilização”, explica Sergio Finger, CEO da Trashin.

A arquiteta Veronica Polzer informa que, no planejamento, os geradores devem elaborar uma tabela de inventário de todos os materiais e verificar se já existe no mercado um material similar sustentável. “Se não existir, a opção é entrar em contato com o fornecedor e verificar se existe programa de logística reversa para aquele produto”, diz. Se não houver como retornar o produto ou a embalagem para o fabricante, os resíduos devem ser armazenados de acordo com a NBR 11174 e identificados com as respectivas Fichas de Segurança do Produto Químico (FISPQ’s).

E o transporte dos resíduos deve ser realizado por empresas qualificadas para essa função, que atendam aos protocolos regionais exigidos para essa prática. Os meios de transporte utilizados devem garantir a máxima segurança, evitando que os produtos se misturem no trajeto ou caiam nas vias, causando acidentes e contaminações. A responsabilidade compartilhada, prevista pela Política Nacional de Resíduos Sólidos, torna o gerador responsável por todas as etapas do descarte. “Ao contratar um transportador, é essencial verificar toda a documentação e os destinos que irão reciclar os materiais”, aconselha Veronica Polzer.

 

Situação atual

Na opinião de Levi Torres, coordenador da Associação Brasileira para Reciclagem de Resíduos da Construção Civil e de Demolição (Abrecon), houve uma redução no volume de resíduos reciclados nos últimos anos, embora haja um evidente avanço na conscientização ambiental.

O papel do poder público é insuficiente, ainda mais agora com a legislação ambiental mais fragilizada, o que torna a fiscalização das prefeituras e dos estados inócua”, diz.

Segundo Alessandro Azzoni, advogado especialista em direito ambiental e econômico, ainda que a legislação sobre resíduos sólidos tenha aspectos muito positivos, a fiscalização ainda é insipiente. Na cidade de São Paulo, por exemplo, quem fiscaliza crimes ambientais é a Secretaria do Verde do Meio-Ambiente, enquanto quem executa as coletas é a Autoridade Municipal de Limpeza Urbana (Amlurb). “Se houver destinação incorreta, tem que haver notificação e os funcionários das secretarias devem autuar, mas isso só pode ser feito em flagrante. Mas a comunicação entre as secretarias consegue pegar em flagrante? A dinâmica dificulta a aplicação da penalidade”, opina.

No Estado de São Paulo, a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB) informa oferecer para as prefeituras o SIGOR Módulo Construção Civil, ferramenta de gestão que rastreia os resíduos para garantir disposição adequada. A entidade ainda oferece o Fundo Estadual de Prevenção e Controle da Poluição (FECOP) e o Fundo Estadual de Recursos Hídricos (FEHIDRO) para que os municípios adquiram recursos financeiros para reciclar RCC. Dessa forma, é fundamental que o gerador esteja atento para que seus procedimentos se adequem às especificidades regionais.

 

Cabe observar que a maioria das obras são aprovadas somente no âmbito municipal, lembrando que compete aos municípios a elaboração do Plano Municipal de Gestão de Resíduos da Construção Civil, no qual devem constar também as medidas visando a redução da geração” – CETESB.

 

Para Guilherme Arruda, CEO da VG Resíduos, nota-se que as empresas estão mais conscientes quanto à importância da gestão sustentável, impulsionadas principalmente pelos consumidores. “Recentemente fizemos reunião com construtoras de condomínios e o diferencial para a venda de lotes é a sustentabilidade. Por isso se vê, por exemplo, construção de praças com material que sobrou das construções”, relata. De acordo com Lilian Sarrouf, coordenadora técnica do Comitê de Meio-Ambiente (Comasp) do SindusCon-SP, ainda existe uma carência grande com relação à fiscalização nas ruas.

 

“Sabemos que a maior geração de resíduos das cidades é do pequeno gerador, que está mais sujeito às irregularidades, muitas vezes, por falta de conhecimento. Mas o setor tem avançado. Há pouco tempo a preocupação era apenas destinar os resíduos, hoje a busca é por soluções para reciclagem e reutilização, com foco na economia circular” – Lilian Sarrouf, coordenadora técnica do Comasp

 

Outra mudança de mentalidade na construção civil é deixar de ver os resíduos como passivos e sim como geradores de receita. “O segredo é separar os materiais para depois vender para recicladores e outras empresas que poderão usá-los como matéria-prima”, diz Arruda.

Para Veronica Polzer, a gestão sustentável é mais acessível do que se pensa, depende apenas de uma quebra de paradigma. “As caçambas que separam por tipo de material são mais baratas que as caçambas mistas. Uma obra sustentável está ao alcance de todos, não é difícil de implantar. São mudanças no processo e a conscientização das equipes de obra que fazem toda a diferença”, finaliza.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Por Victor Hugo Felix, jornalista.

 

 

 

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