Ainda que traga benefícios para a cadeia produtiva e o meio ambiente, economia circular encontra resistência na construção civil.
O setor industrial está, há séculos, acostumado com uma lógica de produção linear: extração de matéria prima, manufatura, venda, uso e descarte, sucessivamente. Porém, já é evidente que esse processo traz graves consequências ambientais. O uso contínuo de recursos não renováveis e a frequente produção de lixo acarreta problemas como poluição do solo e das águas, mudanças nas condições climáticas, alterações nos biomas, dentre outros. Logo, uma nova forma de se pensar a produção industrial se faz necessária.
A economia circular surge como alternativa, buscando minimizar ou zerar os danos causados pelas indústrias. “É um modelo econômico com o propósito de dissociar o crescimento e desenvolvimento econômico do consumo de recursos finitos”, explica Amanda Neme, engenheira química coordenadora do setor de Construção da Rede Empresarial Brasileira de Avaliação de Ciclo de Vida (Rede ACV). “O objetivo central é manter o valor dos recursos, produtos e materiais em circulação, a partir de um sistema composto por modelos de negócios inovadores e otimizados”.
Um exemplo de circularidade adotado pelas indústrias é o que empresas de cimento, como LafargeHolcim e Saint Gobain, realizam. Parte do resíduo gerado na produção é retrabalhado e retornado para a linha, maximizando o aproveitamento da matéria-prima. Ações como essa, porém, demandam estudos que assegurem a efetividade da sustentabilidade e a qualidade do produto final. “Estas mudanças podem até gerar influências negativas no impacto do ciclo de vida dos materiais. Assim, nosso desafio é buscar inovações que viabilizem a economia circular em todos os seus princípios, seja no uso de resíduos como matérias-primas até o prolongamento da vida útil”, pondera Neme.
Na Construção Civil
De acordo com artigo da Ellen McArthur Foundation, instituição global referência em estudos sobre economia circular, a construção civil é um setor tão aquecido que, até 2060, obras equivalentes à cidade de Paris serão erguidas por semana até 2060 ao redor do mundo. Porém, a forma como são realizadas, seguindo processos lineares, é o cerne do impacto ambiental do setor. A instituição indica que, ao se aplicar princípios de economia circular, seria possível reduzir emissões de gases CO2 dos materiais de construção em 38% até 2050, reduzindo a demanda por aço, alumínio cimento e plástico. A indústria também estaria menos suscetível à escassez de matéria-prima e a volatilidade dos preços.
“A construção civil é responsável por 50-75% do consumo de recursos naturais do planeta e 50-65% dos resíduos sólidos urbanos (ABRAINC, 2018)”, corrobora Amanda Neme. Segundo a engenheira química, se por um lado o setor gera os produtos que devem ter durabilidade, por outro é constituído por uma grande quantidade de atores, o que dificulta uma articulação consistente para promover a economia circular. Do mesmo medo, aspectos culturais impedem avanços no tema, gerando frequentes desperdícios: “Como reformas efetuadas em residências ou edificações recém-entregues”, acrescenta.
Na percepção de Amanda Neme, o setor de obras mundial é um dos que menos evoluiu em inovação sustentável, em especial no Brasil, onde a construção civil é considerada tradicionalista, com produtividade reduzida e escassez de mão-de-obra qualificada. “Segue tecnologias culturais antigas, com grande uso de capital humano e pouca industrialização, o que em sua maioria resulta em altos custos, baixo nível estratégico de planejamento e controle, baixa qualidade e altos índices de patologias, além de baixo desempenho ambiental”, pontua.
Catherine Otondo, presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo (CAU/SP) concorda a construção civil brasileira seja resistente a inovações. “A economia circular de fato é o grande assunto para todos os índices que estão produzindo as cidades e as construções no mundo contemporâneo. Mas no Brasil ainda se trata de um mercado restrito porque exige que os produtos utilizados tenham tecnologia e especificidade custosas para os nossos padrões de construção. Aqui, assentar tijolo e colocar massa ainda é o jeito mais barato de se fazer uma construção”, analisa.
O principal caminho, segundo Otondo, para contornar o problema seria a ação de políticas públicas que gerem demanda e deem escala para a economia circular na construção civil. “Isso deve ser feito de uma maneira consciente e de baixo para cima. Não adianta vir com grandes leis se elas não conseguem ser aplicadas no dia a dia. Acho que o Estado tem como missão produzir exemplares dessas formas de construção que incluem tratamento de água, o uso de materiais pré-fabricados, capacitação de mão de obra etc. Tem que se pensar no ciclo completo e não só na parte final, como fazer um prédio e depois falar para usar água de reuso”, diz.
Regulamentação
A Política Nacional de Resíduos Sólidos, instituída pela Lei nº 12.305/2010 e regulamentada pelo Decreto nº 10.936/2022, traz importantes direcionamentos para a gestão de resíduos no Brasil, em temas como reciclagem, reuso, descarte e logística reversa. Porém, não dispõe de normas específicas para a economia circular. Segundo a Rede ACV, a regulamentação poderia contribuir para padronizar conceitos e melhorar no entendimento e diferenciação de projetos. “Assim, cresceria o interesse e promoveriam-se mais e mais projetos voltados para esse tema”, complementa Amanda Neme.
A ausência de um marco regulatório específico dificulta ações dos próprios órgãos públicos, que devem se pautar pelo princípio da legalidade. É o que diz Douglas de Paula D’Amaro, Gerente de Meio Ambiente da Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras (SIURB) da Prefeitura de São Paulo. “A administração pública em geral tem dificuldade em implementar políticas públicas que não estão plenamente previstas na legislação”. De acordo com o gerente, o que a secretaria consegue fazer refere-se a materiais da construção civil classe B, de acordo com a resolução CONAMA 307/02, como plásticos, papel/papelão, metais, vidros, madeiras, entre outros. “Os canteiros de obra são dotados de recipientes específicos para a destinação de resíduos para reciclagem, e os funcionários das empreiteiras são treinados para realizarem a correta disposição destes resíduos”, diz.
Arquitetos que atuaram em obras públicas, como aeroportos e habitações populares, lidam com essa dificuldade. Exemplo é Andressa Gama, que participou do projeto Residencial Rubens Lara, construído por meio da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), desenvolvido pelo escritório Levinsky Arquitetos. “Não há grandes incentivos financeiros para que a circularidade seja uma premissa. Em geral, sustentabilidade é um artigo de luxo que as construtoras têm como valor agregado”, pontua.
Localizado em Cubatão (SP) e com quase 2 mil unidades, o Residencial Rubens Lara foi projetado para ser modelo em inovação sustentável, com revestimentos de pastilhas recicláveis e capacidade para uso de aquecedores solares. Segundo Andressa Gama, desde a licitação já havia a expectativa de que as obras fossem um novo passo em direção a projetos mais sustentáveis. “Esse foi o primeiro de uma grande virada de chave no programa. Parte da demanda elétrica já era de captação solar, por exemplo”. Porém, segundo a arquiteta, essa nem sempre é a praxe no setor. “Se não está na premissa de pagamento desde a licitação, dificilmente vai acontecer”, afirma.
O arquiteto Luiz Florence teve experiências similares em obras de aeroportos, como os de Macaé (RJ), Florianópolis (SC) e Viracopos (SP). Segundo o profissional, que é membro do Grupo de Trabalho de Cidades e Emergência Climática do Instituto de Arquitetos do Brasil/SP (IAB-SP), as grandes construtoras adotaram políticas para minimizar a geração de resíduos, com materiais como steel frame, drywall, estrutura metálica, concreto pré-moldado, revestimentos secos, fachadas ventiladas, e pinturas simples. “Mas na verdade, a economia circular só foi mais presente nos momentos em que as empresas puderam usar isso para melhorar sua imagem pública e o compliance com seu cliente, ou quando foi financeiramente interessante”, critica.
Florence enfatiza que não há, mesmo nos editais de concessão privada de infraestrutura — no caso de aeroportos, estradas, sistemas de transporte urbano — ou em editais de obras públicas, a proposta de algum benefício contratual, tributário ou financeiro para quem adotar soluções de economia circular. “Fica, portanto, a cargo das empresas privadas de aplicar medidas, o que só acontece quando a dinâmica vier alinhada com os interesses corporativos”, opina.
A lei do PNRS precisaria, assim, ser atualizada, detalhando as demandas novas para a atividade de recepção e retrabalho do material descartado, segundo o arquiteto. Medidas como essa poderiam resultar em mais economia para os próprios setores produtivos. “A indústria do aço poderia se aproveitar da alta dos preços de commodities e repensar a reutilização de estruturas obsoletas. Se ela não apostar nesse caminho, pode acabar perdendo espaço para a madeira engenheirada. Temos também o crescente uso (ainda experimental) da versão modernizada da taipa de pilão, que permite o uso de um material com baixíssima pegada de carbono (solo retirado do local) para a construção de elementos de vedação e estruturas”, pontua.
Atuação independente
Na ausência de uma regulamentação específica, diferentes entidades têm buscado meios de nortear práticas de circularidade na construção civil e na economia como um todo. A Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura (AsBEA), por exemplo, lançou o guia “Sustentabilidade na Arquitetura – Diretrizes de escopo para projetistas e contratantes”, orientando a escolha sustentável de materiais e sistemas construtivos. Já A Confederação Nacional das Indústrias (CNI) lançou, em 2020, a cartilha “Compras Públicas Sustentáveis”, apresentando critérios que auxiliam o Poder Público a usar, por exemplo, materiais de construção oriundos da economia circular em obras.
Empresas como a construtora Planet Smart City, responsável por projetos urbanísticos de cidades inteligentes, buscam medidas próprias para aplicar a economia circular. “O principal exemplo é a SG Premoldados, uma fábrica que pertence à Planet Smart City e produz todos os pisos intertravados de nossas cidades inteligentes. Todo os resíduos de cimento são reaproveitados para a produção de outros utensílios, evitando o descarte na natureza”, conta Susanna Marchionni, cofundadora e CEO da empresa no Brasil. Por meio de um sistema BIM integrado por ferramentas personalizada, a construtora faz análises multicenário, escolhendo métodos construtivos que gerem menos resíduo, garantindo até a reutilização do solo escavado para paisagismo e pavimentação.
Pautando-se pela circularidade e sustentabilidade, a Trisoft, empresa de forros para isolamento acústico, investiu em tecnologia para zerar o consumo de água como matéria-prima e manufaturar suas peças com mantas feitas de garrafas PET recicladas. Neste ano, a empresa tem o objetivo de favorecer a logística reversa, reaproveitando os produtos após o uso. “Estamos estudando a vasta diversidade de produtos que podem ser feitos com nossos materiais de pós-consumo. A ideia é usá-los como matéria-prima em formato de revestimentos funcionais. O produto descartado não é lixo, é matéria prima. É importante que as indústrias se organizem”, pontua Maurício Cohab, CEO da empresa.
Diversas outras medidas ainda podem ser aplicadas para promover a economia circular na construção civil, desde a formação de mão-de-obra qualificada à conscientização da sociedade civil. Evidencia-se, contudo, a importância de a sustentabilidade ser transversal na construção civil, englobando diferentes atores, desde a concepção até o uso das construções finalizadas.
Por: Victor Hugo Felix
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