Para investidores e incorporadores, compreender essas diferenças e planejar o projeto de acordo com as normas urbanísticas e ambientais é essencial
Os terrenos de marinha são faixas costeiras com 33 metros medidos a partir da linha de preamar média de 1831, além de áreas acrescidas (aterros) e terrenos marginais de rios sujeitos às marés. Por serem bens da União, o particular nunca se torna plenamente dono. A relação com esses imóveis ocorre por meio de aforamento, também chamado de enfiteuse, ou por ocupação.
Em setembro de 2025, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) atualizou seu Código de Normas e incluiu a Subseção VI – Terrenos de Marinha (arts. 716 A a 716 L) com regras voltadas a cartórios e registradores. Essas mudanças impactam diretamente o parcelamento do solo urbano e as incorporações imobiliárias em áreas costeiras.
Demarcação e domínio
Um imóvel só é considerado terreno de marinha se houver registro oficial de demarcação feito pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU). Esse registro inclui planta e memorial descritivo e precisa constar na matrícula do imóvel. Sem essa averbação, o simples fato de o terreno estar próximo do mar não o torna, automaticamente, um terreno de marinha. Por isso, antes de qualquer negociação, é fundamental verificar se existe demarcação oficial.
Ocupação: uso precário
No regime de ocupação, o particular recebe da União apenas autorização de uso. A lei federal 9.636/1998 define a ocupação como um ato administrativo precário. Afinal, ela exige utilização efetiva do imóvel e não gera direito real, podendo ser revogada a qualquer momento. O Código de Normas reforça que a “inscrição de ocupação” tem efeito meramente publicitário: o ocupante não tem posse ou domínio, não pode praticar atos de disposição sem autorização e qualquer transmissão exige Certidão de Autorização para Transferência (CAT) e recolhimento de laudêmio.
Além disso, o Manual de Regularização Fundiária em Terras da União esclarece que a inscrição de ocupação obriga o pagamento de uma taxa anual de 2% do valor do terreno para ocupações regularizadas até 30/09/1988 e de 5% para ocupações posteriores. O não pagamento implica inscrição em dívida ativa e retomada do imóvel.
Aforamento (enfiteuse): desdobramento do domínio
O aforamento é um contrato em que a União mantém o domínio direto, enquanto o particular (foreiro) recebe o domínio útil e paga um foro anual de 0,6% do valor do terreno. O foreiro pode transmitir o domínio útil mediante pagamento de laudêmio (5% sobre o valor do terreno) — em casos de baixa renda, há isenção. O aforamento é mais estável que a ocupação, pois permite financiamento, garantia hipotecária e assegura ao foreiro o direito de uso e disposição, condicionado ao cumprimento das cláusulas e ao pagamento de encargos.
Encargos financeiros
Embora não sejam tributos, os encargos cobrados pela União influenciam as decisões de investidores. Além do foro anual, que equivale a 0,6% do valor do terreno no caso de aforamento, e da taxa de ocupação, que varia de 2% ou 5%, dependendo da data da regularização, há o laudêmio, cobrado nas transmissões ou ocupações onerosas do aforamento, que corresponde a 5% do valor do terreno.
A taxa de ocupação tem alíquotas superiores às do foro, o que torna o aforamento, a longo prazo, economicamente mais vantajoso para quem pretende desenvolver o imóvel.
Unificação de áreas particulares e de marinha
Uma das inovações do Código de Normas (art. 716‑C) é autorizar a unificação de terrenos particulares e de marinha em uma mesma matrícula quando forem destinados a um mesmo empreendimento, como loteamentos, condomínios ou incorporações. Essa unificação dispensa a autorização prévia da SPU, entretanto, a matrícula resultante deve especificar o percentual correspondente à área alodial e à área de marinha, permitindo o controle dos encargos. A unificação é vedada se a porção de marinha estiver sob ocupação, já que essa forma de uso é precária.
Parcelamento e incorporação no regime de aforamento
O art. 716‑I do Código de Normas catarinense permite que o foreiro do terreno de marinha pratique atos de subdivisão, desdobro, loteamento, desmembramento, partilha e incorporação imobiliária sem necessidade de autorização da SPU. Após o registro do parcelamento ou da incorporação, o cartório deve anotar que a venda das unidades depende de CAT (certidão emitida pela SPU) e recolhimento de laudêmio. Entretanto, contratos de promessa de compra e venda podem ser firmados sem a CAT. Essa previsão amplia a segurança jurídica de investidores ao delimitar claramente quando o consentimento da União é exigido.
Restrições à ocupação
A ocupação, por sua precariedade, não permite o parcelamento do solo nem a formação de condomínio. O Decreto-Lei nº 9.760/1946, ainda vigente, proíbe loteamentos ou desmembramentos de áreas ocupadas, exceto quando realizados pela União ou a pedido do ocupante que comprove melhorias e interesse público. Assim, ocupantes que pretendam desenvolver empreendimentos imobiliários precisam primeiro solicitar a conversão da ocupação em aforamento. Projetos de lei recentes, como o PL 307/2025, discutem a conversão de ocupações consolidadas em aforamentos, mas, até que sejam aprovados, continua valendo a proibição.
Princípios ambientais e comunidades tradicionais
Os terrenos de marinha situam‑se no perímetro urbano de muitos municípios litorâneos. A Constituição Federal (art. 182) e o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) determinam que a política urbana deve garantir o cumprimento da função social da propriedade e a ordenação do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano. Um estudo da Universidade Federal do Pará sobre ocupação de terrenos de marinha alerta que a transferência das áreas não ocupadas para expansão do perímetro urbano só deve ser feita se forem cumpridas as normas do Estatuto da Cidade e de planejamento urbano, para evitar ocupação desordenada ou especulativa.
Recomendações práticas
- Verifique a situação jurídica do imóvel junto à SPU e ao cartório de registro de imóveis;
- Avalie o regime de uso: ocupação é precária e não permite parcelamento, enquanto o aforamento é mais seguro e estável;
- Calcule os encargos financeiros: foro, taxa de ocupação e laudêmio influenciam no custo do investimento;
- Planeje a unificação de áreas com clareza sobre as proporções entre terreno de marinha e terreno particular;
- Observe o plano diretor e o zoneamento urbano, especialmente as zonas de risco;
- Inclua o licenciamento ambiental desde o início do projeto;
- Acompanhe as mudanças legislativas, que podem alterar regras de regularização e encargos.
Os terrenos de marinha têm importância estratégica e ambiental para o país. A atualização do Código de Normas do TJSC trouxe mais segurança jurídica para empreendimentos, ao definir de forma clara as regras de registro e os limites entre aforamento e ocupação.
Para investidores e incorporadores, compreender essas diferenças e planejar o projeto de acordo com as normas urbanísticas e ambientais é essencial. O desafio é conciliar o desenvolvimento imobiliário com a preservação das áreas costeiras e o bem-estar das comunidades locais, garantindo que o uso do solo siga princípios de sustentabilidade e responsabilidade pública.
Por Ricardo Murilo da Silva, especialista em direito ambiental, urbanístico e imobiliário do escritório Flávio Pinheiro Neto Advogados.
Imagem: Ilustrativa
